Candidato casado e/ou com filhos não pode ser impedido de prestar concurso público para a carreira militar

Por Taís Mariana Lima Pereira, advogada

Muitos interessados na carreira militar se deparam com um óbice previsto em editais de concursos das Forças Armadas: a proibição dos candidatos serem casados (as), terem constituído união estável, terem filhos ou dependentes.

Essa proibição recorrente nos editais deriva da previsão disposta no artigo 144-A do Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880/80):

“Art. 144-A. Não ter filhos ou dependentes e não ser casado ou haver constituído união estável, por incompatibilidade com o regime exigido para formação ou graduação, constituem condições essenciais para ingresso e permanência nos órgãos de formação ou graduação de oficiais e de praças que os mantenham em regime de internato, de dedicação exclusiva e de disponibilidade permanente peculiar à carreira militar.”

O intuito da lei é não afastar do convívio familiar o (a) candidato (a) que tem dever de cuidado para com os familiares, especialmente filhos e cônjuges, e eventualmente pais que dele (a) dependam financeiramente, considerando que a formação dos militares de carreira exige um período de dedicação exclusiva. É o que comumente se chama de condição de “arrimo de família”, e que não raras vezes também ocasiona a dispensa daqueles que prestam o serviço militar obrigatório.

Entretanto, rotina e organização familiar não são questões que devam sofrer interferência do Estado, a ponto de impossibilitar que um (a) candidato (a) apto (a) realize o seu sonho de ingressar na carreira militar e a partir deste trabalho sustentar a família.

Os Tribunais Regionais Federais têm aos poucos solidificado o entendimento de que essas proibições constantes em editais de concursos públicos das carreiras militares são incompatíveis com os princípios da inviolabilidade da vida privada, livre acesso ao trabalho, amplo acesso aos cargos públicos, proteção da família, razoabilidade e isonomia, todos estes previstos na Constituição Federal de 1988.

Exemplo desse posicionamento jurisprudencial favorável aos candidatos que têm condição de arrimo familiar é o seguinte recente julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. MILITAR. EXIGÊNCIA DO CANDIDATO SER SOLTEIRO E SEM FILHOS. AMPLO ACESSO A CARGOS PÚBLICOS. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PROTEÇÃO À FAMÍLIA. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. PROVIMENTO. 1. Trata-se de agravo de instrumento interposto por particular que, nos autos do Processo nº 0802375-47.2021.4.05.8400 (ação declaratória de nulidade de previsão editalícia e obrigação de fazer), indeferiu pedido liminar pleiteando: a) a declaração de nulidade (inconstitucionalidade) do art. 3º, XII, do Edital nº 03/SCA, ante a violação aos arts. 1º, III; 3º, IV, 5º, X; 7º XXX, 226, § 7º; 227; todos da Constituição Federal de 1988; b) que a parte ré se abstenha de impedir a sua inscrição no concurso em apreço; c) caso aprovado nas etapas do concurso, que não seja impedida sua matrícula no Curso de Formação e Graduação de Sargentos, sendo garantia sua promoção a 3º Sargento, salvo outro motivo plenamente justificável. 2. Em suas razões recursais, o agravante alega que que participa de Concurso Público para Admissão aos Cursos de Formação e Graduação de Sargentos das Áreas Geral, Música e Saúde, nos termos do Edital nº 02/SCA de 23 de março de 2021. O mencionado certame estabelece, no art. 3º do seu Edital, requisitos que devem ser atendidos ainda no ato da inscrição, dentre os quais se encontra a declaração de que o candidato não possui filhos, dependentes e nem é casado ou constituiu união estável. Sustenta que foi obrigado a assinalar que estava de acordo com a referida regra, sob pena de não ter sua inscrição finalizada e perder a chance de participar do concurso. 3. Ocorre que o agravante, que possui filho menor e é casado, entende que tais requisitos afrontam a Constituição Federal, em especial os seus art. 1º, III, art. 3º, IV, art. 5º, X, art. 7º, XXX e art. 227, bem como os princípios da isonomia e razoabilidade que vinculam Administração Pública em suas atividades, além do princípio da dignidade da pessoa humana. 4. O pleito foi indeferido em decisão proferida pelo magistrado de origem, sob o fundamento de que não ficou demonstrada a probabilidade de direito do autor, ora agravante. 5. Essa Terceira turma, em caso análogo, já se posicionou entendendo que, em que pese o edital seja considerado a lei do concurso, devendo o candidato observar as exigências nele contidas, os requisitos exigidos para participação, dentre os quais “não ter filhos ou dependentes e não ser casado ou haver constituído união estável, por incompatibilidade com o regime exigido para formação ou graduação, sendo condição essencial para ingresso e permanência nos órgãos de formação ou graduação que mantenham regime de internato, dedicação exclusiva e de disponibilidade permanente peculiar à carreira militar” não se coadunam com os preceitos constitucionais de amplo acesso aos cargos públicos, bem como da proteção especial à família, previstos nos arts. 37, I e II, e 226, da CF/88. 6. “Não é razoável ou proporcional que circunstâncias de status familiar sejam capazes de impedir o ingresso de candidatos na carreira militar; o estado civil não pode servir de fator de discriminação para o exercício de nenhuma atividade pública. Resta, por todas as considerações, justificada a intervenção do Poder Judiciário.” (PROCESSO: 08018370320204058400, APELAÇÃO CÍVEL, DESEMBARGADOR FEDERAL LUIZ BISPO DA SILVA NETO (CONVOCADO), 3ª TURMA, JULGAMENTO: 11/02/2021) 7. Por oportuno, a Administração Pública, no desempenho de suas atividades, encontra-se vinculada aos Princípios expressos e implícitos na Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, os princípios sempre representam um papel relevante permitindo à Administração e ao Judiciário estabelecer o necessário equilíbrio entre os direitos dos administrados e as prerrogativas da Administração. 8. Nesse diapasão, considerando que se está diante de um conflito entre princípios, estando de um lado o princípio da legalidade e de outro os da razoabilidade, da proporcionalidade, da isonomia e da dignidade da pessoa humana e considerando também que não há hierarquia entre tais princípios, faz-se necessário um juízo de ponderação analisando o caso concreto. 9. Com relação ao risco de dano grave, este também se verifica presente, sobretudo pela previsão contida no Art. 10 do Edital, o qual prevê a inabilitação do candidato que contrariar, ocultar ou adulterar as informações relativas às condições exigidas no ato de inscrição. Considerando que o recorrente assinalou a opção como se não tivesse filhos e não fosse casado, é certa a precariedade de sua inscrição, bem como a possibilidade de inabilitação no Concurso de Admissão, com sua eliminação e exclusão. 10. Agravo de instrumento parcialmente provido, mantendo os termos da decisão liminar proferida, a qual é atribuída natureza cautelar, para que o agravante possa ser mantido no certame e participar das próximas etapas e fases, caso seja aprovado, abstendo-se a agravada de promover sua inabilitação e exclusão com fundamento no requisito analisado nesta decisão, até julgamento definitivo da demanda originária.

(TRF-5 – AI: 08058482120214050000, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL FERNANDO BRAGA DAMASCENO, Data de Julgamento: 23/09/2021, 3ª TURMA. Grifo nosso).

É interessante observar que inclusive o Ministério Público Federal (MPF) tem adotado entendimento de que a proibição de candidatos casados, com filhos ou dependentes participarem de concursos públicos das carreiras militares é inconstitucional, já tendo ajuizado Ações Civis Públicas (ACP) contra editais que continham essa vedação (a exemplo da ACP nº 0804874-38.2020.4.05.8400).

Os interessados em concursos públicos das carreiras militares não precisam desistir do seu objetivo por serem casados, terem filhos ou dependentes. Em tais casos é possível obter judicialmente ordem que assegure o direito de não serem inabilitados no concurso por tal motivo.

Militares que tenham sido dispensados do serviço por adquirirem condição de arrimo de família e queiram reingressar aos seus postos também podem questionar judicialmente a legalidade da dispensa, tendo em vista a inconstitucionalidade do art. 144-A do Estatuto dos Militares.

Um advogado especialista em Direito Administrativo pode indicar as soluções jurídicas mais adequadas para que candidatos de concursos públicos não sejam prejudicados por previsões editalícias ilegais e inconstitucionais.

Artigo publicado originalmente no JusBrasil.

Imagem: pch.vector, Freepik.

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